Só é possível começar a entender a razão do mundo e da humanidade “começando do começo”, isto é, compreendendo a narrativa da criação divina, e isso por meio dos três primeiros capítulos do livro de Gênesis. Temos, neste trecho, os princípios essenciais que demonstram o plano de Deus ao criar o mundo e o ser humano. Em outras palavras, temos aqui os “arquétipos” (para adaptar um conceito de Carl Gustáv Jung) ou matrizes que determinam como e para quê fomos criados. A partir disso, é possível mapear e entender a história humana.
Todo o processo da criação se constituiu a partir dessas matrizes que marcam o funcionamento do Universo e da pessoa humana. Na área de informática, é como chamamos de “firmware”, isto é, a parte de um computador, tablet ou smartphone que tem as instruções essenciais e básicas para o seu funcionamento. É como um sistema operacional “embarcado” dentro de nós e na natureza, que faz as coisas acontecerem. Também chamamos de “built-in”, isto é, algo que está dentro de nós, da natureza criada. Isso é fácil de entender quando lemos Rm 2.14ss, em que temos a lei de Deus gravada em nosso interior. A própria natureza criada funciona segundo leis físicas que, quando desconsideradas, trazem consequências ambientais graves. Neste artigo, vamos focalizar a natureza humana; no futuro, vamos falar sobre a criação e os princípios bíblicos aplicados à realidade ambiental.
Deus criou nosso mundo preparando-o para que o ser humano pudesse nele viver de modo saudável. Deu vida às plantas, aos animais, criou leis físicas que promovessem equilíbrio ambiental. Fomos criados para a vida.
É comum no campo da Teologia afirmarmos que Deus nos criou para sua glória (Rm 11.36; Is 43.7). Mas, o que isso significa na vida prática? Como aplicar isso no cotidiano? Consegui uma pista ao considerar os dois grandes mandamentos que Jesus mencionou, sobre os quais não existe algo superior (Mc 12.28ss). Temos dois mandamentos, mas três níveis de relacionamentos: Deus, eu e o próximo. Assim, é possível compreender que viver para a glória de Deus é viver em amor e harmonia com Deus em primeiro lugar; comigo mesmo, em segundo lugar; e, em seguida, com o próximo. Mas, nesta conexão com o propósito principal da criação, temos ainda de considerar a própria natureza criada, então viver em amor e harmonia com essa natureza. Aqui entra nossa responsabilidade ambiental e com a “morada” que Deus nos deu para vivermos.
O valor da vida era tanto que Deus colocou no jardim a “árvore da vida”; provavelmente, seu fruto tinha substâncias orgânicas que promovessem estabilidade metabólica e, assim, a manutenção equilibrada da vida. Em Gn 3.22, temos no hebraico um verbo no presente que pode indicar ação contínua, dando a ideia de que o ser humano tinha acesso a essa árvore. De tão importante é a vida que essa árvore estará na Nova Jerusalém (Ap 22.2).
Infelizmente, em Gênesis 3, temos a rebelião do ser humano com esse propósito original da criação, o que provocou ruptura com Deus e com a vida. Rompendo com Deus, o ser humano rompe consigo mesmo (consciência de culpa, surge o senso da vergonha, ele se esconde), rompe com o seu próximo (lança a culpa em Deus e na mulher), e a própria natureza passa a produzir espinhos e ervas daninhas. Os quatro componentes que explicam o viver para a glória de Deus entram aqui em colapso, e toda a vida entra em crise. Ao romper com Deus, o ser humano rompe com a vida, é expulso do Éden e deixa de ter acesso à árvore da vida, colocando data de validade para a própria vida em direção à morte total – física, emocional/mental e espiritual.
Mas, como Deus optou pela vida como matriz da criação, temos em Gn 3.15 a esperança na descendência da mulher (Jesus, Filho de Deus), que foi a expressão do seu amor por nós (Rm 5.8), a vinda de Jesus Cristo, que morreu pela nossa rebelião, nos dando vida (Rm 5.12ss). Essa declaração divina em Gênesis 3.15 chamamos de protoevangelho ou primeiro evangelho. A isto chamamos de salvação, isto é, o meio pelo qual Deus providenciou a recuperação da história humana, trazendo-nos novamente para a vida. Ao reconhecer nosso estado de rebelião e a obra salvadora de Jesus, temos o caminho para retornar ao plano original de Deus, sendo reposicionados na história e na ordem das coisas criadas, para novamente viver para a glória de Deus.
A vida é tão importante para Deus que o centro da história da recuperação humana possui dois eventos essenciais que lhe dão significado – a morte e a ressurreição de Jesus. Em Rm 6.4, aprendemos que, se fomos crucificados com Cristo, também devemos nos considerar ressuscitados para um novo modo de vida. No final dos tempos, seremos ressuscitados ou arrebatados para continuar a viver.
Infelizmente, com o correr do tempo, aquilo que foi um meio de expressão do amor recuperador de Deus para a vida, para a história da criação – a salvação – acabamos tornando um fim em si mesmo. Tornamos a cruz o símbolo máximo do Cristianismo e nem sempre nos lembramos da ressurreição de nosso Salvador (1 Co 15.1-4).
Em geral, nossa mensagem evangelizante aponta para a escatologia e para a volta de Jesus no futuro, apenas preparando-nos para a morte, em vez de nos preparar para a vida, prover nossa transformação em suave e agradável perfume de Deus, por meio de uma vida alegre, exemplar, “contaminante” da esperança e da razão de viver, dando-nos sentido ao nosso projeto de vida dentro do território daqueles quatro componentes que demonstram o “viver para a glória de Deus”. Em muitas ocasiões, salvação passou a ser a oferta de uma espécie de “seguro contra o incêndio do inferno” ou como um cartão magnético para abrir a porta do céu, que se tornou um fim em si mesma, de modo a nos levar a priorizar o meio e não o fim – a recuperação da vida para os propósitos originais da criação.
Tanto isso é verdade que, por muito tempo, entendemos e ensinamos que o foco da Grande Comissão (Mt 28.19,20) era o “IR” pregar a salvação, enquanto que o imperativo (no original grego) vai muito mais além, que é o “FAZER DISCÍPULOS”, transformar vidas, fazer “transfusão” de uma vida em outra. Neste caso, trocamos vidas transformadas por atividades, estruturas, programas e eventos. Para isso, não precisamos necessariamente demonstrar vida, mas competência. Deus nos criou para a vida, tanto que, no Novo Testamento, sem contar a parte histórica e escatológica, o que temos em geral focaliza a vida humana e os relacionamentos.
Precisamos rever o plano da salvação que pregamos, que precisa deixar de ser apenas a aceitação de uma verdade conceitual para ser o arrependimento de nosso estado de rebeldia contra Deus, contra o seu plano criador, reconhecer a recuperação que temos pela morte e ressurreição de Jesus, seu filho, que veio nos trazer muito mais do que a garantia do céu no futuro; veio nos trazer de volta para a vida, pois ele mesmo nos ensinou que veio para nos dar vida abundante (Jo 10.10). A tão necessária salvação precisa ser reconhecida como um meio, um conserto, para nos trazer de volta para as nossas origens em Gênesis e não um fim em si mesma ou a principal preocupação de Deus. Antes do plano redentor, temos o plano criador. O plano redentor é um meio para consertar e nos trazer de volta para o plano criador de Deus.
Assim, temos o desafio de rever e aprofundar nossa Teologia, nossa Missiologia, nossas ações missionárias, nossas prioridades eclesiásticas, de modo que tudo se torne um meio para nos trazer de volta para esse plano criador. Até que Jesus volte, precisamos tornar imperativo o “fazer discípulos” como “A” estratégia divina para trazer novamente vida à própria vida humana, que está sem rumo e caminhando para sua autofagia e destruição.