Ouvi esta palavra a primeira vez de um aluno. É um termo novo para se referir pejorativamente ao mundo espiritual. Indica também a centralização da vida nas coisas espirituais, deixando de lado a realidade do cotidiano e outros aspectos da vida. O sociólogo Max Weber mencionou que, no mundo da religião, há diversos atores e, entre eles, os que operacionalizam a religião ou os “profissionais do sagrado”. Há o mago, que age autônomo e é carismático no sentido de chamar pessoas a segui-lo; o sacerdote, que procura manter o funcionamento da religião e defende as suas instituições e crenças básicas; e, o profeta que, em geral, reage contra o que é instituído e, por isso, entra em confronto especialmente com o sacerdote.
Weber fala ainda de dois tipos de profetismo: o ascético, que conduz as pessoas, ainda vivendo no mundo, a adotarem um distanciamento do modo mundano de se viver; e o místico, que prefere a atitude contemplativa do religioso a ponto de procurar se distanciar do mundo e pouco se importar com as questões éticas da vida. São dois extremos. E preocupa o fato de que tem havido crescimento acentuado no tipo de profetismo místico no meio dos crentes. Parece que as pessoas estão mais preocupadas em “malhar a alma”, num adoracionismo desenfreado, sem se preocupar com seu papel no mundo dos vivos. Isso não é adoração, mas adoracionismo, uma recente “síndrome” em que o crente se entrega de corpo e alma a uma espécie de transe espiritual, em um ambiente de entretenimento e catarse.
Acredita-se que a adoração, nesse sentido, seja produtora de milagres, sobretudo materiais. Se no passado o salvacionismo era o eixo central não só da doutrina, mas da pregação, da liturgia e das práticas eclesiásticas, hoje o adoracionismo, fruto de instintos humanos, vai acabar levando a igreja a uma vida anestesiada e descompromissada com o cotidiano. É como tentar viver no monte da transfiguração, contemplando as maravilhas de Deus, sem se dar conta de que lá embaixo há toda sorte de dramas e dilemas humanos. Acontece que viver na espiritosfera tem elevados riscos. E o maior é a desconexão da realidade. E o adoracionismo não leva o crente a ter uma vida significativa e influente neste mundo caótico.
Outro detalhe importante é o elevado volume de canções que frutificam na vivência eclesiástica, algumas até carecem de sólida base bíblica e teológica, outras fruto de cultura religiosa. Mas há boas canções. Um dilema é que o tempo de validade das canções hoje é reduzido e nem dá tempo para que sejam internalizadas em nosso coração e alma. Partindo do pressuposto de que a aspecto lúdico associado aos ritmos musicais levam a mensagem das canções a mobilizar nosso interior e quanto mais conseguimos internalizá-las com todo esse volume de conteúdo (lúdico – ritmo – mensagem) nos leva a momentos íntimos de adoração, de posicionamento a situações de vida. Mas nem dá tempo para isso, pois uma nova canção dá lugar à outra e mais outra, então, poder-se-ia pensar que estaríamos vivendo um regime descartável de louvor e adoração? Algo para pensar
Mas também o que pode nos levar à preocupação é a transformação da adoração, do louvor, em entretenimento em que alguns modelos de cultos estão mais próximos de um “show gospel” com elevada performance, luzes performáticas, fumacinha e outros apetrechos. Com certeza elevada performance é necessária, mas...
Além disso, temos de moderar entre o ritmo clássico ou lírico e o contemporâneo. Sobre isso observo certa e boa ginástica de ministros de louvor buscando atender tanto um estilo quanto outro.
Está errado então adorar? Evangelizar? De modo algum. A adoração é o fim para o qual fomos criados e a salvação se refere a um importante passo para nos conduzir de volta a Deus. Os extremos é que são prejudiciais. O culto público há de ser resultado de nossa vida particular de comunhão com Deus (Rm 12.1) e não um mero meio de extravasar nossos instintos. O equilíbrio é o caminho.
A espiritosfera vai mais além do campo da liturgia alcançando a interpretação prática da vida em que, por exemplo, agimos como agimos, tomamos decisões sem os devidos cuidados e, depois, ficamos com o “pires na mão” pedido que nosso Deus dê um jeito na situação.
Vai também mais além ainda, quando o cenário do país está cada dia mais degradado espiritual, ética e moralmente, quando o país está dividido, e a opressão contra a religião cresce, a agenda de decisões sociais e governamentais desprestigia a educação séria e formadora do sujeito histórico que possa participar da saudável construção do futuro preparando o país para as novas gerações. Quando também essa mesma agenda fragiliza os laços familiares, incentiva a imoralidade, o gênero líquido e que o país está mergulhado em impunidade, corrupção, descontrole no trato contra a violência. Já não há mais nem segurança jurídica que possa ser um referencial de segurança. Vivemos imergidos em um ambiente repressivo e de censura que a todos amedronta.
Faça um cálculo considerando o atual cenário caótico do país e procure fechar a equação buscando prever até onde vamos conseguir sobreviver? Como será esta nação, nossa casa em que vivemos, daqui a alguns anos?
E o mundo da “espiritosfera” passa ao largo de toda essa realidade, o importante passa a ser nos recolhermos ao final de semana em nosso ponto de encontro religioso vivendo como que em uma redoma protegida pelos anjos celestiais.
Mas e os OUTROS SEIS DIAS DA SEMANA? Como é a vida no “chão da semana”?
Em Atos 17.6 houve a constatação muito chave que pode nos alertar e nos impulsionar a regularizar nosso papel na vida cotidiana: “[…] aqueles que tem transtornado o mundo chegaram até nós!”. O verbo transtornar no grego indica “virar de perna para o ar”, “revolucionar”. Os cristãos daquele primeiro momento, não somente pregavam um Cristo que salvava. Depois de convertidos ao Evangelho, sua vida era transformada e participavam ativamente da vida pública, os valores do reino de Deus eram aplicados na vida diária afetando o ambiente em que viviam, colocando em “cheque” os valores morais da época.
Em muitos congressos tenho perguntado aos participantes, se, nós evangélicos brasileiros tivéssemos agido de forma semelhante em nossa história aqui, será que teríamos um cenário como estamos vivendo, repleto de corrupção, impunidade, imoralidade? Em geral a resposta que recebo é o silêncio.
Assim, a “espiritosfera” também se manifesta em nosso modo de sermos cristãos quando deixamos de ser sal, luz, embaixadores do reino em nosso ambiente concreto de vida, restringindo nossa religiosidade a um dia da semana e a um local que tratamos como sagrado.
Será que foi assim também na igreja alemã quando o nazismo estava se instalando?
A igreja tem um papel profético, que Billy Graham nos mostrou: “Nós somos a Bíblia que o mundo está lendo. Nós somos o sermão que o mundo está ouvindo”. John Stott, neste mesmo sentido, nos advertiu: “Não devemos perguntar: ‘O que há de errado com o mundo?’ Esse diagnóstico já foi dado. Em vez disso, devemos perguntar: ‘O que aconteceu com o sal e a luz’”?
Sair da “espiritosfera” e vir para o mundo real, vivendo um Evangelho real eis um enorme desafio, mas foi para isso que fomos chamados.