Artigo

Vivemos o Cristianismo ou uma cultura religiosa?

Era uma vez um crente muito fiel, que orou insistentemente pedindo a Deus mudança de emprego. Esperou, esperou e, finalmente, surgiu a oportunidade. Então, no primeiro dia de trabalho agradeceu a Deus pela resposta à sua oração.

 

Outro crente explicava a um colega da mesma Igreja que estava dando o dízimo, pois assim, Deus retribuiria para ele em dobro, pois entendia que Deus queria um sacrifício, para que ele pudesse merecer de volta Seu favor. Um irmão da mesma Igreja, que lia muito a Bíblia, especialmente antes de dormir, foi elogiado pela sua piedade e lhe perguntaram o que o motivava àquele tipo de reverência. Ele prontamente respondeu que se não fizesse aquilo antes de dormir poderia ter pesadelos e que precisava agradar a Deus para ser abençoado e não castigado. Esta mesma resposta um outro crente deu, quando indagado por que era tão envolvido no trabalho da Igreja e nunca perdia nenhum culto, nunca dizia não a um cargo novo etc.

 

Outro crente, enfrentando uma situação complicada, foi indagado se não perdia a paciência e o que estava fazendo para encontrar uma solução. Ao que respondeu, se for para acontecer acontecerá, Deus controla tudo.

 

Quem poderia recriminar a fidelidade expressa nesses exemplos? Bem, se pudermos tomar como exemplo a atitude dos crentes de Bereia, que conferiam nas Escrituras tudo o que lhes era ensinado (Atos 17.10-11) poderemos aprofundar a compreensão deste modo de viver o Cristianismo.

 

Nesta linha de avaliação, tenho notado que necessitamos rever nossas práticas eclesiásticas e na vida cristã para conferirmos se coincide com os ensinos bíblicos, isto é, se são cristãs ou com tintura cultural e religiosa ou mesmo se focalizam um dado momento na linha do tempo da revelação progressiva de Deus que temos nas Escrituras.

 

Além disso, precisamos lembrar a matriz formativa religiosa em nossa cultura – catolicismo, espiritismo, religião afro etc. – que traz inúmeras práticas e crenças (crendices). Quando alguém se converte ao Evangelho trará consigo esse conteúdo e, em geral, acaba “lendo” a Bíblia e as práticas cristãs a partir dessas lentes.

 

Desta forma, muito do que vivemos e praticamos segue o caminho de um Cristianismo comprometido com a verdade bíblica, mas também tenho notado a criação, circulação, consumo e reprodução de culturas religiosas em nosso ambiente que acabam sendo resultado mais de práticas que recebemos dos nossos precursores ou mesmo com cores encontradas no Judaísmo, Catolicismo, Espiritismo e Afro-religiões. Quando isso ocorre podemos dizer que estamos vivendo a cristandade, isto é, culturas religiosas, mas não o Cristianismo bíblico.

 

Os primeiros exemplos citados no início deste artigo estão mais próximos do judaísmo, depois catolicismo (especialmente doutrina da penitência). Mas também buscar agradar a Deus pelas nossas boas obras está bem próximo da doutrina espírita da caridade e boas obras.

 

Em primeiro lugar, o ensino bíblico é orarmos com súplica e já agradecermos, demonstrando aceitação da resposta que Deus vier a nos trazer, seja ela qual for (Filipenses 4.6-7). Em segundo lugar, por mais que queiramos “negociar” com Deus nos valendo de nossos méritos e obras pessoais, ainda assim não alcançaremos a sua perfeição e justiça. Nossos esforços são como que descartáveis, uma vez que não somos perfeitos (Isaías 64.6). É por isso que Deus ama a quem dá voluntariamente, com alegria (II Coríntios 9.7) e, afinal de contas, tudo é dele (Lucas 9.23; Gálatas 2.20; Romanos 12.1ss), não apenas 10%.

 

O obedecer a Deus para ser abençoado e não castigado está muito próximo da concepção legalista judaica, pois o legalismo nada mais é do que evitar o castigo e buscar benefícios, hoje muito ligado à Teologia de Mercado e da Prosperidade.

 

O exemplo do “Deus cuidará...se for para acontecer acontecerá” também pode ter traços do fatalismo visto nas religiões afro e até mesmo nas indígenas.

 

A redução da vida cristã a atividades, ocupacionismo e performance, tem conexão com o pragmatismo funcionalista dos nossos precursores, que, aliás, fizeram grande trabalho, mas nos deixaram esta herança cultural. Neste sentido, há crente demonstrando que ao cumprir o ritual de estar presente nas atividades eclesiásticas, contribuir, ter algum cargo, já satisfez as suas obrigações com Deus. Novamente a tintura da doutrina católica da penitência, mas também da doutrina da concepção sacramental como meio de graça, bem longe da compreensão da Reforma Protestante – sacerdócio universal dos crentes. Neste caso, você só é bom crente se for útil, se estiver engajado e for performático. Viver para Deus acaba se reduzindo a “trabalho na igreja”, eventos, programa, estruturas e a rituais mecanicamente aprendidos, que em nada agradam a Deus (Isaías 1.10-20; 29.13). O ensino do Novo Testamento mostra que o Cristianismo é muito mais do que isso. É viver o Evangelho integralmente a cada dia da semana, em qualquer situação ou área da vida (Lucas 9.23, “cada dia”). A Igreja faz parte, mas não é sozinha o Reino de Deus. E tudo isso voluntariamente e com profundo senso de realização (I Timóteo 6.1ss). Afinal, as virtudes cristãs são acompanhadas da expressão “bem-aventurados” (felizes) e não de “deveis” (Mateus 5.1ss compare com Colossenses 2.23ss).

 

O mesmo acontece quando dizemos “vamos à Igreja”. Mas Jesus morreu e ressuscitou por cadeiras, instrumentos e prédios? No Novo Testamento temos sempre a ligação da Igreja com pessoas salvas e redimidas por Jesus e não com prédios. Nós somos a Igreja juntos com os irmãos e onde estivermos, mas criamos um imaginário cultural de que o prédio é a Igreja, sem dúvida necessário, mas não é a Igreja.

 

Além disso, muitas vezes reduzimos o Cristianismo a uma espécie de “ocupacionismo e entretenimento de fim de semana” ao transformarmos o domingo – dia de descanso e celebração - em dia do cansaço, como se o crente devesse pregar o Evangelho, exercer seus dons de serviços, adorar etc., somente em um dia da semana. Parece-me que queremos fazer e viver em um dia a vida integral dos sete dias da semana, novamente deixando de viver um Cristianismo em tempo integral.

 

Mas ainda há o conceito de espaço sagrado que damos em geral ao templo, como a “casa de Deus”, que, no fundo, é baseado na Teologia do Antigo Testamento, dentro do conceito de revelação progressiva. Chegaremos à outra conclusão se considerarmos o ensino de Jesus na conversa com a mulher samaritana (João 4) que tinha também a mesma preocupação, quando Jesus demonstrou-lhe que já era chegada a hora em que Deus consideraria o estado do adorador e não o local em si. Mesmo porque, dentro do conceito de revelação progressiva na Bíblia, Atos 7.48 nos ensina que Deus não habita em santuários feitos por mãos humanas, mas também que o nosso corpo é o templo do Espírito Santo (I Coríntios 6.16) e santuário do Deus vivo (II Coríntios 6.19). Em outras palavras, no Novo Testamento o coração do adorador é a prioridade, nós somos o templo de Deus e devemos considerar todos os locais sagrados em que devemos reverenciar a Deus. O Cristianismo, portanto, deve ser estilo de vida, mas também vivido em todo e qualquer lugar.

 

Na história, é possível ver líderes que, acidamente, criticaram o Cristianismo, tais como, Marx, Nietzsche, Freud etc. Mas, considerando o lugar da fala de cada um deles, na realidade estavam criticando a cristandade e não o Cristianismo, tal era a intensidade da cultura religiosa, legalista, institucional em que o povo cristão estava envolvido. Daí surgiram pesadas críticas e preconceitos contra Deus, a Bíblia e o Evangelho. Hoje está acontecendo o mesmo, inclusive, pelos meios massivos de comunicação. E nós precisamos reverter esse processo, vivendo segundo os ideais de Deus, despidos, o máximo possível, da coloração cultural que se distancia do sentido essencial do Evangelho.

 

Este artigo, em nenhum momento, defendeu a ideia de um Cristianismo relapso, anárquico e mobilizado pela vontade de cada pessoa, em vez disso, demonstramos a necessidade da busca pelas reais razões e motivações bíblicas para nossa prática na vida e trabalho cristão.

 

Há outros exemplos de cultura religiosa, mas estes demonstram que se agirmos como os crentes bereanos poderemos compreender melhor o que é possível aceitar do que é cultural e o que, de fato, é bíblico e inegociável. Seria um bom exercício iniciarmos uma análise de nossas práticas com a Bíblia.