Artigo

Dimensão missional (parte IX) - A Igreja como nova humanidade (parte II)

Quando buscamos compreender a Bíblia e a ação divina de recuperação de toda criação e criatura pela lente do que estamos chamando de DIMENSÃO MISSIONAL é possível aprofundar nossa compreensão e descobrir aspectos de nosso papel na história de vida, seja como Igreja, seja como cristãos individualmente, e em outros muitos aspectos que começam a ficar mais claros e definidos. Isso também amplia nossa ação no campo missionário, além de mobilizar cristãos para que atuem de forma mais efetiva no ambiente em que vivem.

 

O artigo passado deu partida a um tema de elevada importância, que é a descrição da Igreja como nova humanidade, que pretendemos ampliar nesse artigo de hoje.

 

Estes dias, tivemos na Coreia do Sul o 4º Congresso do movimento Lausanne, em que o tema foi objeto da chamada Declaração de Seul:

 

“A igreja é a nova humanidade de Deus, criada por Cristo, que reconcilia os crentes com Deus e uns com os outros. Essa nova humanidade está sendo transformada para refletir a imagem de Cristo, aquele que revela a verdadeira e plena humanidade” (Ef 2.14-16; Rm 8.9; 12.1-2; II Co 3.18).

 

A figura da ferrovia que temos utilizado nos mostra que a Igreja existe não em função de uma missão própria, mas em função da missão do próprio Deus (missĭo Dei) em recuperar de volta a criação e a criatura perdidas, de modo que possamos começar a compreender que o papel institucional, operacional e estrutural que a Igreja deve ter passa a ser meio e não fim. Na figura da ferrovia, seriam os dormentes. Você se lembra?

 

Isso já nos ajuda a redescobrir que o papel da Igreja vai muito mais longe do que apenas viver para si mesma a cada final de semana e que apenas levar periodicamente uma oferta missionária não estaria cumprindo seu papel.

 

Ao desenharmos, no artigo passado, a Igreja como nova humanidade, citamos o missiólogo Michael Goheen ao dizer que a “Igreja não é um corpo religioso, mas a nova humanidade que é uma imagem da vontade de Deus no final da história universal para trazer unidade a todas as coisas no céu e na terra sob Cristo” (Efésios 1.10; 2.11- 22).

 

Como nova humanidade, a Igreja representa a extensão de Deus, de Sua vontade, das Boas Novas que terão papel importante em se expressar por meio de nossas decisões e atuações onde estivermos, seja cumprindo o trabalho missionário, seja cumprindo uma vocação profissional.

 

Nisso desaparece a “profissão clerical” e a “atuação leiga”, pois todos nós somos o povo de Deus (do grego λαῖκὸς, latim laicus, alguém do povo). Todos estamos em missão, cumprindo a missĭo Dei, assim, todos estamos sendo dia a dia enviados: “Pai […] não peço que os tires do mundo, e sim que os guardes do mal [Satanás] […] santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade. Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo […] quem me vê, vê aquele que me enviou” (Jo 17.15-7; 12.45).

 

Então, nosso papel como nova humanidade vai muito mais longe, muito além de apenas verbalizarmos o Evangelho por meio de um roteiro ou plano de salvação. Essa salvação ou plano já tem de se fazer presente na vida concreta de cada um de nós demonstrando a nova humanidade que se expressará por meio de decisões, atos e vida à luz dos ideais que foram perdidos no Éden com a rebelião da velha humanidade (Gênesis 3).

 

Na literatura que trata sobre a missão da Igreja e a sua atuação no mundo, a ênfase geralmente se destaca no despertamento para o cuidado contra a injustiça social, também no papel e responsabilidade da igreja em denunciar os desmandos da corrupção, violência, imoralidade, secularismo etc. Como nova humanidade, esse papel vai além, com a formação do caráter e o aparelhamento ético de cada cristão. Aqui entra o que chamamos de ética missional, que é uma ferramenta prioritária para que cada cristão possa ter referenciais nas decisões e ações como nova criação na vida pública. Cabe à Igreja também discutir os dilemas do cotidiano e trazer respostas e caminhos para que cada um possa cumprir seu papel no mundo como nova humanidade, portanto indo mais longe do que apenas o tratamento da injustiça social e econômica.

 

Mais uma figura para ilustrar tudo isso pode nos ajudar a compreender melhor nosso papel:

 

A figura traz duas linhas horizontais, indicando a humanidade decaída (1º Adão, 1º ser humano, no grego ἄνθρωπος – humanidade). A linha superior tem Jesus como o último Adão, isto é, Aquele que encerra a raça adâmica decaída e inicia a nova humanidade. A linha inferior representa o tempo presente, o tempo decaído desta criação, enquanto a linha superior é o tempo da nova criação, o tempo não apenas da salvação, mas também da reconstrução de nossa vida à semelhança de Jesus (II Coríntios 5.17) e percorrerá até o tempo da volta do próprio Jesus para a restauração final de todas as coisas (Efésios 1).

Nesta outra figura, temos o surgimento de nosso papel como nova humanidade diante da história da vida, agora como regenerados (R), cumprindo nossa missão ampla na atuação na vida pública, mas mantendo a missão específica como sacerdotes intermediando as Boas Novas para que a “primeira humanidade” possa não apenas conhecer, mas também ver “ao vivo” essas mesmas Boas Novas sendo traduzidas por palavras e ações em nosso viver diário. E aqui se unem a MISSÃO DA PROCLAMAÇÃO e a MISSÃO DA PRESENÇA em nossa vida como nova humanidade, tendo diante de si o papel fundamental de sermos a vitrine expositora de um Deus vivo, transformador, que passa a ser traduzido na vida de cada cristão pela sua palavra e obras, pois “tudo o que fizerem, seja em palavra seja em ação, façam-no em nome do Senhor Jesus, dando por meio dele graças a Deus Pai” (Cl 3.17).

 

Assim, a Igreja como nova humanidade tem como papel essencial não apenas agregar mais gente para o trabalho interno, mas formar discípulos para atuarem no mundo e ganharem o direito de serem ouvidos como médicos, advogados, professores, juízes, pedreiros, motoristas de uber etc., para atuarem no mundo como sal e luz (Mateus 5.13ss), como embaixadores de Cristo que representam o reino de Deus e seus valores como nova humanidade.