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Dimensão Missional - Missão do envio e missão da presença (parte I)

Ao longo dos anos, sempre me incomodou o fato de pregarmos um Evangelho que transforma e não vermos essa transformação concreta nas vidas que o aceitam. O apóstolo Paulo até descreve essa situação na vida da Igreja de Corinto, indicando que havia ciúmes, contendas e outras mazelas entre os cristãos lá (I Coríntios 3.1ss).

 

Ou o Evangelho que anunciamos está equivocado ou não estamos anunciando todo o Evangelho de Jesus Cristo. Aliás, o próprio apóstolo nos lembrou que ele nunca havia deixado de anunciar todo o propósito (no grego, é βουλή) de Deus (Atos 20.27). Tenho concluído que talvez essa seja a causa.

 

Mas aí vem outra pergunta: o que então está faltando?

 

Antes de responder a essa questão, descobri outra mais importante ainda ao ver uma situação no livro de Atos que me despertou a indagar como era a atuação e vida dos primeiros cristãos. Em Atos 17.6, temos um exemplo disso: “estes que têm transtornado o mundo chegaram até nós...”. Ora, a vida dos cristãos daquela época não era apenas anunciar verbalmente as Boas Novas, mas, muito mais, assumir os ideais e valores das Boas Novas em seu viver diário, em suas decisões e relacionamentos na sociedade em que viviam. Isso significava colocar em questionamento a imoralidade da época, a idolatria, os valores éticos adotados nos relacionamentos, nos negócios, na família, nas amizades etc. Isso tudo marcava a PRESENÇA dos cristãos no ambiente e cultura em que estavam diariamente inseridos. A situação aqui descrita em Atos foi apenas uma ponta de toda a situação e intensa influência na sociedade da época, a ponto de que nos anos 300 d.C., os cristãos já se aproximavam de serem 50% da população do Império Romano. Quando, sentindo-se ameaçado pela sua presença, o imperador decidiu tornar o Cristianismo a religião oficial do Estado e aí começa a surgir o que chamamos na história de Cristandade, que é a “miscigenação” do Cristianismo com a cultura da época, que, ao longo do tempo, foi perdendo a sua essência. Diversos movimentos surgiram na história para buscar corrigir essa situação, sendo o principal a Reforma Protestante.

 

Vamos lembrar do período das missões com o objetivo de colonizar o “mundo pagão”, as Cruzadas e outros movimentos, tudo com o objetivo de “cristianizar” o mundo da época, com a doutrina da Igreja.

 

E aqui começo a desenhar o cenário pensando que a MISSÃO DO ENVIO continuou a ser praticada, mas a MISSÃO DA PRESENÇA, influenciando com os ideais e valores do Reino de Deus na vida concreta, foi se misturando com a presença do poder papal e institucional da Igreja, que passou a querer governar até mesmo as descobertas científicas.

 

Creio que estas duas expressões - MISSÃO DO ENVIO e MISSÃO DA PRESENÇA - podem nos ajudar a compreender e alcançar a resposta para nossa pergunta inicial.

 

No nosso caso específico, como evangélicos, penso que também temos recebido influência dos movimentos avivacionistas do final do século retrasado, em que havia urgência da pregação do Evangelho e a retirada do maior número de pessoas das portas do inferno para que, na iminente e esperada volta de Jesus, pudessem ser salvos. Ao estudar a vida de líderes da época, como Moody, é possível notar que essa urgência da MISSÃO DO ENVIO se tornou prioritária, não havia tempo para outro propósito. Isso veio a influenciar a missiologia da época, e até hoje nosso desafio maior tem sido anunciar verbalmente as Boas Novas e plantar Igrejas que também devem continuar essa missão.

 

O convertido, então, é trazido para dentro da Igreja, preparado para ser um bom crente de final de semana, fiel e leal. Terminado o domingo, inicia a semana cuidando como pode de sua vida, profissão, relacionamentos no mundo, pois “o mundo jaz no maligno” e espera que Deus possa lhe dar uma ajuda como um tipo de “personal guru” na solução das mazelas da vida, até que Jesus possa voltar.

 

Assim, a vida acaba se segmentando em vida privada e religiosa aos domingos e em seu espaço particular, familiar, e durante a semana nos separamos na vida pública no exercício profissional, relacionamentos e a vida se segmenta em dois espaços separados em vez de ser uma vida integral sob os pés do Mestre (Lucas 9.23 - “cada dia”). A MISSÃO DA PRESENÇA no mundo exercendo seu papel como sal, luz, embaixador do Reino, fica reduzida a ser testemunha verbal de Cristo em alguma ocasião que for possível. A MISSÃO DO ENVIO fica por conta de “profissionais” missionários, evangelistas, pastores e, nesse caso, o papel do crente fica, muitas vezes, reduzido a “pagar a conta”, dando oferta missionária e contribuições para pagar o salário desses vocacionados.

 

Será que essa rotina acabou por segmentar a missão de Deus (missio Dei) em restaurar toda a criação e criatura da rebelião que ocorreu após a criação (Gênesis 3)? Será que essa rotina nos tirou de estar presentes no cotidiano da vida e fomos perdendo o direito de sermos ouvidos pelo mundo? Deixando nosso papel de sal, luz e representantes do Reino de Deus? Fomos perdendo o papel de sermos os tradutores, vitrine das Boas Novas diante de um mundo perverso, sem Deus e sem coração? Fomos perdendo a função de sermos uma comunidade e povo de contraste diante desse mesmo mundo? E assim, o Evangelho passou a ser muito mais uma mensagem verbal, nem sempre transpassando a vida prática dos negócios, dos relacionamentos e da vida depois do domingo?

 

Nesse momento, estou pensando que nosso papel integral poderia bem ser representado por um tripé, em que todos os pés são importantes, e tirando um deles o tripé cai: anunciar verbalmente (MISSÃO DO ENVIO) + viver intensamente e ser transformado (MISSÃO DA PRESENÇA).

 

Falei em missio Dei e isso representa o papel que Deus assumiu em redimir toda a criação e criatura decaída e, ao longo da história, Ele convoca Seu povo (ENVIO) a viver (PRESENÇA) os ideais que foram perdidos lá no Éden quando o ser humano se rebelou contra Ele - o Criador (Gênesis 3). O povo de Israel e, depois, Judá, deveriam ser essa tradução, vitrine e povo de contraste diante do mundo idólatra, imoral e corrompido. Infelizmente, não cumpriram esse papel. Assim, dos dois povos, judeus e gentios, Deus fez um só (Efésios 2, Romanos 9-11) - a Igreja - para a continuidade de sua missão (a missio Dei). Um povo enviado (MISSÃO DO ENVIO) para ser a sua presença (MISSÃO DA PRESENÇA) no mundo. A ilustração de uma ferrovia pode mostrar isso, e vamos lembrar que quando um trilho é interrompido, a viagem para. Será que é exatamente isso que está ocorrendo ao longo do tempo conosco como Igreja de Deus, a nova humanidade?

 

Vejam que o alicerce, a base de tudo, é a missio Dei, a missão de Deus em resgatar tanto a criação quanto a criatura (Efésios 1; Colossenses 1). Os dormentes são as estruturas, planejamento, programas, atividades e eventos que deverão seguir e atender aos objetivos propostos pela missio Dei, e para promover tanto a MISSÃO DO ENVIO quanto a MISSÃO DA PRESENÇA. Tudo isso junto é integrado para constituir a DIMENSÃO MISSIONAL, um adjetivo talvez novo para nós, mas para indicar uma dimensão ampla da vida da Igreja e do cristão nestes dois aspectos. De modo que se viva uma vida missional, se viva uma vida moldada pela missão de Deus missio Dei (Stetzer) e, a partir de minha conversão, meu projeto de vida é agora o projeto da missio Dei e eu me entrego como ferramenta dele para que ele, em sua missão de restaurar toda a criação e criatura, me tenha como seu instrumento

 

ento. E aqui será mais fácil compreender a diferença entre missões e missão. Mas isso fica para um próximo artigo.

 

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