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Família: até quando vai existir?

Acompanhando notícias dos movimentos sociais e órgãos governamentais, seja do Executivo, Legislativo e mesmo do Judiciário, é possível perceber que a linha do tempo vai invadindo o terreno da família como componente social e seguro para a formação dos filhos e seu preparo para a vida. Aliado a isso, os meios de comunicação são outro agente impulsor que busca mostrar a necessária independência dos filhos em relação aos pais, que não podem se arvorar de quererem invadir a privacidade dos pequenos em desenvolvimento.

 

Ao longo da história, tem havido inúmeras alterações no modelo chamado tradicional de família, que no passado até se espelhava no “american way of life” na época do filme “Papai Sabe Tudo!”. Até hoje, a família ainda é, em muitos casos, como que um posto de gasolina, um “lugar” para a ‘galera’ ir se abastecer com alimento e passar a noite, como que em um estacionamento enxarcado com comunicação via redes sociais.

 

Por outro lado, ao longo da história, também tem sido possível aprender que pais que vão além de serem meros progenitores e mantenedores, se tornam instrumentos ativos na preparação dos filhos para que possam ser participantes criativos e dinâmicos da realidade em que vão atuar, seja na vida social, escolar ou mesmo profissional. A Rui Barbosa é atribuída a frase de que “a família é a célula mater da sociedade”. Podemos dizer a célula matriz da sociedade se a vemos pelas lentes da visão sistêmica da Psicologia.

 

Neste sentido, a realidade demonstra que a família pode ser considerada o primeiro núcleo social do qual a pessoa faz parte, pois é em seu ambiente que vivemos desde os primeiros momentos de vida até que vamos criar a nossa própria família.

 

É no ambiente familiar que se descobre o “outro”, a alteridade, mas também os limites da individualidade, pois ninguém é uma ilha (Thomas Merton), havendo necessidade da compreensão dos limites da convivência, mas também da colaboratividade. No lar é que se aprende a encontrar o caminho do perdão como meio de reabrir portas da convivência. No lar é que se aprende escuta atenta, valorização de opiniões divergentes.

 

Claro, tudo isso quando os pais são capacitados para que exerçam seu papel como atores que cumpram sua função para a formação adequada dos filhos para a vida, para não serem meros consumidores da realidade, mas seus participantes e construtores. Lares disfuncionais se tornam ambiente para filhos disfuncionais que alimentam cada vez mais uma sociedade disfuncional.

 

Na narrativa da criação (Gênesis 1-2), tudo foi considerado bom pelo Criador, mas não era bom que o ser humano vivesse sozinho, nem que fosse apenas de uma só natureza. Assim, temos o primeiro casal apontando para a dupla percepção da vida - masculina e feminina - como partícipes na ambientação da primeira célula social matriz - o lar. Essa associação - os dois sendo uma só célula vivendo colegiadamente (Gênesis 2.18-26) - foi modelada para dar condições funcionais equilibradas ao prosseguimento da vida. Com a rebelião (Gênesis 3), o ser humano se distanciou do plano matriz da criação e passou a desenhar a vida por seu próprio modo como resultado da dureza de seu coração (Mateus 19.3-12). O matrimônio, a família e a dinâmica social ficaram disfuncionais em que cada pessoa, em sua individualidade, deixa de lado a alteridade, para impor seu desejo, suas paixões. O patriarcalismo toma o seu lugar transformando a vida em território de propriedade, em vez de convivência pacífica e segura.

 

Poderíamos ainda falar das diversas gerações e das tendências que foram surgindo, do “lar canguru” etc., mas, economizando espaço, será necessário agora destacar que o lar, como ambiente engenhoso e criativo da vida, começa a ser fragmentado e desconsiderado em sua essência. Até mesmo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) começa a ser colocado em suspeição.

 

Fazendo uma coleta em diversas fontes, tem sido possível descobrir propostas que agora fazem parte do que poderíamos chamar de um programa mundial para a ressignificação da vida em que o indivíduo seja de fato a “célula mater” da vida e de tudo, e isso vem crescendo especialmente desde a instalação do Iluminismo. Assim, em resumo, é possível descobrir:

 

• Abolição dos conceitos ontológicos de “homem” e “mulher”, com homens e mulheres biológicos assumindo quaisquer papéis de “gênero” que queiram;

 

• Abolição dos conceitos de “monogamia” e de “incesto”, vistos como obstáculos que impedem o acesso sexual dos filhos à sua mãe, propriedade do pai. Com isto, fica liberada a relação sexual não apenas dos filhos com suas mães, mas dos filhos com quaisquer mães ou mulheres, com o objetivo de desconstruir o conceito de “propriedade”;

 

• Com a abolição da monogamia como instrumento de propriedade entre marido e esposa, ficam liberadas opções tais como o poliamor (poligamia), “trisal” ou qualquer outra forma de conexão que possam ser justificadas por decisões consensuais ente as partes;

 

• Abolição do conceito de “sentimentos”, visto como fantasias individuais que sustentam os papéis de “gênero”, as relações afetivas, as relações de propriedade e outros tipos de relações opressivas de dominação de um ser humano por outro;

 

• Abolição do conceito de “propriedade”, passando todas as propriedades privadas ao domínio do Estado. Isso inclui a propriedade do indivíduo que, desprovido de gênero, de mãe, de afetos e de sentimentos, ficará finalmente livre para satisfazer plenamente suas vontades, dentro daquilo que o Estado permitir.

 

Especialmente por esse último item, alguém poderia até afirmar que por trás de todo esse programa teríamos como fundamento uma análise marxista de luta de classes em que o capitalismo invade o lar. Seja como for, vale a pena refletir sobre o assunto.

 

Antes de encerrar essa reflexão, não poderíamos deixar de resumir o parecer do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP), após a plenária temática “Desenvolvimento psicossexual da criança e do adolescente” (19/01/2018), demonstrando as necessárias conexões paternais naturais a partir da própria compreensão médica e psiquiátrica.

 

Em resumo, o CREMESP entende que a saúde mental do ser humano depende de um desenvolvimento harmônico, desde o princípio da vida, e considera que:

 

• a criança é uma pessoa em desenvolvimento e que o ser humano nasce desprovido de condições autônomas para se manter, tanto física quanto psiquicamente;

 

• a criança é dependente e requer cuidados especiais, distintos em cada fase do desenvolvimento;

 

• as diferentes fases de desenvolvimento evoluirão ao longo das duas primeiras décadas de vida e que essa evolução dar-se-á gradativamente;

 

• os bebês e as crianças são absolutamente vulneráveis;

 

• é negligente, irresponsável e alienante consentir ou induzir as crianças a fazerem escolhas prematuras, já que são desprovidas de maturidade para tal;

 

• é função parental apresentar referenciais para a educação psicossexual da criança, podendo se valer de orientação médica e psicológica;

 

E, então, diante destas constatações médicas, como fica esse possível programa mundial que acabamos de demonstrar? Como fica o ambiente familiar que tem sido objeto de descaso e de fragilização? Se a criança e o adolescente são vulneráveis e não possuem as necessárias condições para que possam tomar decisões que, muitas delas, terão efeitos por toda a sua vida e, que, estes seres “vulneráveis” e sem as devida condições serão formados em termos de seu caráter, de seu papel social, de seus valores por quem? Pelos meios de comunicação que já se mostram manipuladores e “proprietários” da verdade?

 

Dentro do ambiente do campo da Epistemologia, sempre existem pressupostos ou conceitos fundantes das opiniões, dos programas sociais, das escolhas. São os chamados “axiomas”, que funcionam como uma espécie de “grau zero do conhecimento” (Domingues), a partir do qual tudo o mais se constrói. Assim, em vez de pensarmos em “preconceitos”, será necessário sermos realistas e fugirmos desse sofisma, o que existe são “conceitos” diferentes. Alguém que pensa diferente, em vez de ter um preconceito, na realidade tem um outro conceito e se tiver uma contestação agressora, é isso que necessita ser retificado.

 

Como cristãos, esse é nosso axioma, nosso grau zero do conhecimento, compreendemos que o Evangelho, sendo mobilizado pelo amor, faz o caminho de volta para o plano matricial da criação para trazer o equilíbrio e a restauração da essência da família como “célula mater” e construtora da vida. Por isso é necessário que dentro da educação na Igreja o lar seja o “locus” privilegiado da formação dos filhos para a vida.

 

Lourenço Stelio Rega