No artigo anterior procurei demonstrar que a Igreja não é um fim em si mesma. Mas o instrumento de Deus para que a missĭo Dei, isto é, a missão do próprio Deus se cumpra. Busquei esclarecer que essa missão dEle tem como núcleo essencial (em inglês core) restaurar toda criação e criatura, em que ele se lançou a partir de Gênesis 3.15 (o protoevangelho, ou primeiro Evangelho), quando prometeu que do descendente de Eva viria concretizar esse propósito essencial.
E esta passou a ser a história de Deus e toda a narrativa da Bíblia, como livro por ele inspirado, vai descrever essa missão de Deus em cada ato e momento da linha do tempo descrito. Então a Bíblia passa a ser uma espécie de grande narrativa dessa história de Deus, uma metanarrativa divina, como um grande varal em que tudo está dependurado nele, a história de Israel, de Judá e da Igreja, que, diante dessa grande narrativa, passa a assumir o papel de povo de Deus participante no cumprimento da missĭo Dei, pois Deus dos dois povos (judeus e gentios) fez um só povo – a Igreja (veja Efésios 2 e Romanos 9 a 11).
Nesse ponto procurei explicar que, ao longo do tempo, fomos desenhando a vida e atividades da igreja focalizando o seu papel de conquistar o mundo para as Boas Novas, cumprindo a MISSÃO DA PROCLAMAÇÃO e a IGREJA COMO MENSAGEM, com o desafio de levar o Evangelho onde ainda não foi alcançado, semear novas igrejas, evangelizar etc. A ênfase nesse aspecto tem sido o trabalho missionário, evangelístico; o envio de vocacionados ao campo missionário. Temos aqui o desenvolvimento do que chamamos de MISSÕES.
Procurei demonstrar que, para que a missĭo Dei se cumpra integralmente, o próprio Deus quer mais, muito mais, quer nos trazer de volta ao Plano da Criação de modo a que o Evangelho vá além de uma mensagem abstrata e apenas verbal, e venha a se encarnar em nossa vida no cotidiano, transformando-a de modo que nossa história, nossas decisões, nossas ações venham a espelhar o Plano da Criação, venham espelhar aquilo para o qual fomos criados, que foi abandonado pela rebeldia no Éden (Gênesis 3). Temos aqui o desafio de Jesus em sermos sal e luz (Mateus 5.13ss), e, Paulo fala que somos embaixadores do reino (I Coríntios 5.20). E aqui descobrimos que a igreja tem também a MISSÃO DA PRESENÇA, e isto, envolve a IGREJA EM e COM MOVIMENTO, sendo a tradução e vitrine desse Plano da Criação, um povo de contraste diante do mundo decaído e rebelde. Por isso dizemos que cada cristão não vai à Igreja, pois todos nós somos a igreja onde estivermos e quando em celebração estamos juntos adorando a Deus como igreja também.
Assim, muito mais do que ter apenas uma missão, a Igreja tem diante de si, de sua essência, o desafio de cumprir o que chamamos de DIMENSÃO MISSIONAL tendo a missĭo Dei, como seu ponto de partida, seu fundamento. Vamos relembrar o missiólogo Christopher Wright que afirma: “[…] não é tanto que Deus tenha uma missão para a igreja, mas que Deus tem a igreja para sua missão. Deus trouxe a Igreja à existência (como o povo em continuidade espiritual orgânica com Abraão) porque Deus é Deus de toda a criação e de todas as nações e Deus está propositadamente trabalhando em toda a história para a reconciliação e redenção de ambos. E Deus cria e chama seu povo redimido para ser cooperadores dele em sua missão redentora no curso da história terrena, então para ser seus reis, sacerdotes e servos na vida gloriosa, contínua e proposital da nova criação por toda a eternidade” (A Grande História e a Grande Comissão, cap. 9, está sendo publicado em português, pela Editora Vida).
O que eu posso deduzir com tudo isso? Essencialmente que o desafio que temos diante de nós – a igreja, o povo de Deus, e cada um de nós que foi alcançado pelas Boas Novas – é muito maior do que possamos imaginar.
Por um lado, temos o desafio de conquistar o mundo para Cristo, por meio da pregação das Boas Novas, desenvolver a obra missionária e evangelizante, despertar e preparar novos missionários, semear novas igrejas, torná-las autossustentáveis cumprindo a missão da proclamação, tendo a igreja como mensagem. Isso temos feito de forma abrangente e com eficiência. Com certeza, poderemos ainda mais dinamizar e ampliar nosso alcance.
Um outro desafio que temos de investir é o cumprimento da missão da presença da Igreja, de cada cristão, no mundo aprofundando o papel da igreja como e em movimento em todos os aspectos da vida pública, no mundo dos negócios (veja o movimento Business As Mission – BAM), no exercício da vida profissional, na sociedade em geral, no meio ambiente em que cada um de nós vive e atua. O ponto aqui é lembrar dos OUTROS SEIS DIAS que seguem o importante dia da celebração – o domingo.
Assim, a Igreja não é uma mera instituição que deva estar voltada a si mesma com uma visão centrípeta, ou mesmo um fim em si mesma. Com esse enorme desafio o que Deus faz é tornar a IGREJA COMO NOVA HUMANIDADE, um povo vivendo na prática cotidiana uma nova vida, transformada e transformadora, demonstrando ao mundo sem Cristo a vida concreta que foi perdida lá no Éden como novas criaturas (II Coríntios 5.17).
Com o missiólogo Michael Goheen, aprendemos que “a igreja não é um corpo religioso, mas a nova humanidade que é uma imagem da vontade de Deus no final da história universal para trazer unidade a todas as coisas no céu e na terra sob Cristo (Ef 1.10; 2.11- 22) […] A Igreja é um povo enviado ao mundo sete dias por semana como testemunhas do reino de Deus, em contraste com a Igreja como um povo reunido [apenas] um dia para adoração [e ocupação institucional e religiosa]” (Tornando-se uma Igreja missional).
Vamos marcar muito mais gols quando compreendermos e concretizarmos nosso papel na presença no cotidiano da vida ao lado dos progressos missionários que temos alcançado. Vamos lembrar que a “missão “é uma questão de presença – a presença do Povo de Deus no meio da humanidade e a presença de Deus no meio de seu povo […] A evangelização do mundo não é principalmente uma questão de palavras ou ações: é uma questão de presença – a presença do povo de Deus em meio à humanidade e a presença de Deus em meio ao seu povo” (Robert Martin-Achard).
É novamente Michael Goheen que nos ensina que “a missão não visa principalmente a propagação ou transmissão de convicções intelectuais, doutrinas, ordens morais etc., mas a transmissão da vida de comunhão que existe em Deus” (Tornando-se uma Igreja missional, citando Newbigin).
Quantos gols temos feito ao desenvolvermos nosso papel no mundo como igreja, como cristãos, como famílias cristãs, como profissionais cristãos? Qual diferença nós estamos fazendo – cada um de nós cristãos – no mundo em que vivemos, na vida pública nestes outros seis dias?
Vamos lembrar que a criação decaída aguarda ansiosamente a manifestação dos filhos de Deus (Romanos 8.18ss). Neste sentido o mundo precisa mais do que uma mensagem verbal, precisa de que essa mensagem das Boas Novas estejam se concretizando na vida de cada um de nós. Pois a nova humanidade é nova, e é humanidade, por demonstrar uma nova perspectiva de vida. O missiólogo Lesslie Newbigin nos desafia que “a contribuição mais importante que a igreja pode dar para uma nova ordem social é ser ela própria uma nova ordem social” (Truth to Tell).
Tenho visto ao longo do tempo que vamos ao mundo, levamos pessoas a Cristo, depois as trazemos para dentro da vida eclesiástica, as preparamos para cumprir seu papel interno da Igreja, servir com seus dons de serviços, contribuir, frequentar os cultos e reuniões. Isso é uma visão centrípeta, voltada para dentro da própria Igreja, fortalecendo suas atividades, seu funcionamento institucional e mesmo até como organismo voltado para si.
E tudo isso é muito bom, mas precisamos progredir e devolver esse cristão ao mundo para ser um cristão sem fronteiras para ali exercer a sua presença transformada e transformadora, cumprindo o seu papel seguindo o desafio que Jesus nos deixou: “assim como o Pai me enviou, eu envio vocês” (Jo 20.20,21).
O membro da Igreja vai fazer gols ao contribuir com a obra missionária, e deve prosseguir e fazer gols por meio de sua presença no mundo. Assim, precisamos devolver ao mundo os membros das igrejas para que possam assumir seu papel cristão como governantes, juízes, promotores, empresários, executivos, profissionais liberais, funcionários públicos e de empresas privadas, motoristas de taxi etc. e ali seguir o que Jesus apontou “quem me vê a mim, vê o Pai que me enviou” (Jo 12.45). Então quem ver um de nós, seja qual for nosso papel na vida pública, deverá ver Deus e Jesus se manifestando por meio de nossas decisões, de nossa influência na sociedade, em nossa vida profissional, como sal, luz, embaixadores.
Aí, então, marcaremos gols na vida prática e cotidiana cumprindo a visão centrífuga que Deus também espera de nós, pois Jesus pediu isso na oração sacerdotal – “rogo Pai não que os tire do mundo, mas que os livre do Maligno” (Jo 17.15-21). Todos fomos enviados ao mundo para ali cumprirmos a missĭo Dei. Aí marcaremos gols, cumprindo o papel para o qual fomos chamados.
Preparei algumas figuras ilustrativas para concluir essa série para o próximo artigo.
Lourenço Stelio Rega