Artigo

O vespeiro do desejo

A minha mãe, dona Alayde, usava e abusava dos ditados populares. Lembro que, em algumas ocasiões, dependendo do tom da conversa ou do comentário feito, ela fazia a seguinte advertência: “Cuidado! Você está mexendo num vespeiro.” Quem já levou a ferroada de um marimbondo ou de uma abelha entende perfeitamente o sentido desse ditado.

 

Falar do desejo sexual pode ser visto como mexer em um vespeiro. Mas penso que é extremamente importante e necessário que isso seja feito, por conta do sofrimento emocional que observamos na vida de muitas pessoas, o que inclui, naturalmente, muitos crentes sinceros, que fazem uma confusão tremenda entre santidade e humanidade. A Dra. Esly de Carvalho ressalta que é preciso ter santidade, com sanidade.

 

Por que devemos abordar e dar mais atenção para assuntos ligados à sexualidade?

 

Primeiro: Porque é um tema bíblico. Observamos isso de modo muito claro no livro dos Cânticos. Vejamos um pequeno recorte desse lindo poema de amor, que diz: “Como são bonitos os seus pés nas sandálias, ó filha do príncipe! As curvas dos seus quadris são como colares trabalhados por mãos de artista. O seu umbigo é uma taça redonda onde nunca falta bebida; o seu ventre é um monte de trigo, cercado de lírios. Os seus seios são como duas crias gêmeas de uma gazela.” (Ct 7.1,3).

 

Segundo: Porque o desejo sexual está presente em todas as pessoas, o que inclui, naturalmente, todos os crentes, até mesmo, e em especial, aqueles que se consideram o suprassumo da santidade. No livro “União com Cristo e identidade sexual”, Rosaria Champagne Butterfield diz que Deus nos dá vitória sobre o pecado, mas não nos lobotomiza (2021, p. 87).

 

Terceiro: Porque as distorções do desejo sexual têm impactado negativamente a vida de muitas pessoas, de muitos crentes. No livro Pornificados: Como a Pornografia Está Transformando a Nossa Vida, os Nossos Relacionamentos e as Nossas Famílias, Pamela Paul cita o capelão cristão Henry Rogers, que afirma que “40 a 70% dos cristãos evangélicos do sexo masculino dizem estar às voltas com a pornografia.” (2006, p. 27).

 

Quarto: Porque o discurso repressivo em relação ao desejo sexual ainda é a forma vigente em muitas falas, palestras e pregações no ambiente eclesiástico. O problema do discurso repressivo é que ele cria máscaras de santidade e múltiplas formas de adoecimento. Quantas crianças, adolescentes, jovens, adultos e até mesmo idosos em nossas igrejas estão sofrendo em silêncio por conta do discurso repressivo em relação ao desejo sexual, que só serve para reforçar o sentimento de culpa?

 

A culpa, como todas as emoções, é um sinalizador emocional importante. Sem a culpa, o que resta é a psicopatia, onde o outro é visto como um mero e desprezível objeto de um prazer mórbido. Mas usar a culpa como instrumento de controle não é correto, não é bíblico. No livro “Culpa e Graça”, Paul Tournier diz que “Jesus suscita a culpa não para condenar, mas para salvar, porque a graça é dada a quem se humilha, a quem toma consciência da sua culpa.” (1985, p. 128, ABU).

 

No livro Sexo e Judaísmo, Jayme Landmann diz que “Os cristãos pressupõem que o primeiro par vivia no paraíso sem ter relações sexuais.” (1999, p. 33, EdUerj). A generalização feita por Landmann não é correta. No entanto, é um fato lamentável que, em pleno século XXI, muitos crentes ainda tenham esse tipo de pensamento. Não entendem, como bem destaca John White, no livro “Eros e Sexualidade”, citando C.S. Lewis, que o prazer “é uma invenção de Deus, não do diabo.” (1999, p. 13, ABU).

 

Vamos fustigar um pouco mais o vespeiro dos desejos sexuais. No sermão do monte, Jesus disse: “qualquer que olhar para uma mulher e desejá-la já cometeu adultério com ela no coração.” (Mt 5.28). A interpretação que Martinho Lutero deu para esse texto é que existe uma diferença entre o olhar com desejo persistente e o olhar enquanto desejo involuntário. A minha dúvida é: em que momento o desejo “involuntário” se transforma em desejo pecaminoso persistente?

 

Observamos a partir da história do adultério do rei Davi com Bate-Seba (2º Sm 11) que basta um simples olhar, uma olhadela furtiva, despretensiosa, para que o desejo sexual seja aguçado. Será que Davi viu Bate-Sebá tomando banho uma única vez, ou será que ele era um voyeurista? Será que, ao ver Bate-Sebá nua, Davi fechou os olhos e disse para si mesmo: “eu não posso sentir isso”, “eu não posso ver isso”, “eu não posso fazer isso”? O fato é que Davi foi traído pela forte erupção da força do desejo sexual.

 

Por que a Bíblia não omitiu essa parte da vida de Davi? Não seria para mostrar que, quando o desejo não é reconhecido, ele pode derrubar qualquer pessoa? Será que a exortação feita pelo Apóstolo Paulo: “Por isso, aquele que pensa estar em pé (grifo nosso) veja que não caia” (1Co 10.12) serve de alerta em relação a isso? Penso que sim. As constantes quedas livres de muitos crentes, muitos líderes, como Davi, são a prova mais clara disso. “Quem pensa estar em pé...” precisa estar atento para não cair e não deve jogar pedras em quem cai.

 

Precisamos falar mais sobre a sexualidade e enfrentar de vez os tabus que transformam esse tema em um verdadeiro vespeiro. Mesmo com resistências e receios, é essencial abrir esse diálogo nas igrejas para ajudar quem sofre em silêncio. É preciso deixar claro que a sexualidade não é algo para se envergonhar, mas um presente de Deus que reflete Sua graça e criatividade. Falar sobre a sexualidade de modo bíblico e humanizado é uma forma de acolhimento e de promoção da saúde mental na igreja.