Dias desses, vi a minha netinha feliz da vida brincando de fazer bolhas de sabão. Aí entrei no túnel do tempo e me lembrei de quando fazia a mesma coisa, quando era criança. Uma brincadeira lúdica que está sendo cada vez mais substituída pelos joguinhos da internet. Falando em joguinhos, assisti a um vídeo onde a palestrante chamava a atenção dos pais para não substituírem a antiga chupeta pelo celular. O uso exagerado da chupeta comprometia a saúde bucal. De modo diferente, o uso exagerado da internet pelas crianças está comprometendo a saúde mental delas. Mas isso é assunto para outro momento.
Vamos voltar ao tema das bolhas. Não das bolhas de sabão, mas das bolhas enquanto modo de isolamento. Não sei se você já ouviu uma expressão muito usada pelos jovens hoje em dia, que diz assim: “ele(a) está vivendo numa bolha”. A bolha aqui pode ser caracterizada por um modo de vida isolado da realidade, onde a pessoa constrói o seu próprio mundinho, em geral como forma de proteção de uma realidade ameaçadora; é viver de modo empobrecido.
No conhecido poema “Navegar é preciso, viver não é preciso”, Fernando Pessoa diz: “Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: ‘Navegar é preciso; viver não é preciso.’ Quero para mim o espírito desta frase.” Ou seja, penso que podemos dizer assim: quero para mim a coragem de furar a bolha da terra firme, enfrentando monstros terríveis que se levantam durante a grande viagem da vida, buscando novas conquistas, novos horizontes. Para viver fora da bolha, é preciso ter coragem para enfrentar inimigos reais e monstros imaginários.
Não é de hoje que a expressão da fé em Deus tem sido usada como uma bolha que envolve aquele que confia em Deus, protegendo-o e livrando-o de todos os males. Muitos usam o texto do Salmo 91: “Mil cairão ao teu lado; dez mil, à tua direita, mas nada o atingirá”, como forma de sustentar essa afirmação totalmente equivocada. Não atentam para o fato de que a interpretação correta deste texto aponta para o fato de que, a despeito das situações inesperadas, inusitadas e calamitosas da vida, a fé em Deus é o que nos mantém de pé na grande caminhada da vida.
O importante é sabermos que a fé em Deus não cria bolhas existenciais que nos protegem de todos os males da vida. A fé não é uma forma de pensamento mágico. Muito pelo contrário, a fé em Deus estoura as bolhas da ilusão e da negação que insistem em nos aprisionar em um mundo ideal de Alice, no país das maravilhas. Não é sem propósito que a expressão “não temas” apareça 366 vezes na Bíblia. O medo é um sentimento normal e legítimo que precisa ser reconhecido, enfrentado e vencido. Quem se deixa aprisionar pelo medo é levado sem perceber para o calabouço da depressão.
Admitir o medo ou falar que está doendo não é falta de fé. É exercício de fé, fruto da intimidade com Deus. O texto bíblico deixa isso bem claro ao relatar as palavras de Jesus na cruz, quando Ele gritou: “Eloí, Eloí, lamá sabactâni?”, que significa “Meu Deus! Meu Deus! Por que me abandonaste?” (Mt 27.46). Por que deveríamos sofrer calados, enquanto Jesus, o Filho de Deus, não procedeu deste modo?
Parafraseando o ditado popular: “quem cala, adoece”. O salmista deu testemunho quando disse: “Enquanto calei os meus pecados, envelheceram os meus ossos pelos meus constantes gemidos” (Sl 32.3). Sentimentos e dores que não são admitidos e expressos são como ácidos que corroem a alma. Isso pode explicar a causa de tantas úlceras, gastrites e outras inflamações e doenças, como apontam vários estudos da psicossomática. Como bem disse Shakespeare, em Macbeth: “Dai palavras à dor: Quando a tristeza perde a fala, sibila o coração, provocando de pronto uma explosão.”
Não existe nada mais prejudicial à saúde mental, à saúde do corpo como um todo integralizado, do que uma fé que coloca as pessoas numa grande bolha que alguns chamam de igreja. Bolha não amalgamada, onde cada um, a despeito de estarem juntos fisicamente, em geral uma vez por semana, conserva suas bolhas emocionais, escondendo emoções e fraquezas. Assim procedem de modo defensivo, para não receberem o rótulo de “falta de fé”. O espírito maligno da religiosidade faz com que as pessoas encenem a fé, ao invés de vivê-la em comunidade. Nada mais antibíblico, considerando, por exemplo, o texto de Tiago que diz: “Confessem os seus pecados uns aos outros e orem uns pelos outros, para que vocês sejam curados” (Tg 5.16). Onde não há liberdade para compartilhar, confessar, trocar, falta saúde espiritual, emocional e física.
No livro Saúde mental e sua igreja, encontramos uma colocação muito importante dentro desse contexto que estamos falando, que diz: “Para muitos, infelizmente, a igreja parece ser o lugar mais difícil para se falar do problema. Amigos não cristãos muitas vezes se mostram mais solidários e menos críticos do que os irmãos e irmãs do corpo de Cristo. Entender por que isso acontece e mudar essa situação é crucial.”
O que fazer? Como mudar essa realidade? Penso que a promoção da saúde mental no contexto da igreja passa pelo processo de estourar as bolhas teológicas, ou seja, as interpretações equivocadas do texto bíblico que descaracterizam a nossa humanidade. No livro A psicanálise e o religioso: Freud, Jung, Lacan, Philippe Julien (2016, p. 36, Ed. Zahar) diz que “o discurso teológico mantém a impotência. Não permite que o homem supere sua angústia, aquela que o afeta pelo fato mesmo de existir em sua contingência.”
Julien pergunta: “De onde vem, no entanto, a ineficácia desse discurso? Por que os pastores não conseguem ouvir a angústia alheia e seu sofrimento? Por que falam como ‘funcionários de Deus’?” Diz: “A resposta é simples. A insuficiência do discurso eclesiástico provém da exegese moderna.” Ou seja, uma boa mensagem bíblica, hermeneuticamente bem construída e contextualizada, que veja o homem como um ser integral (corpo, alma e espírito), e não como partes isoladas, é uma forma de estourar as bolhas da religiosidade que comprometem a saúde mental.
As bolhas de sabão com as quais as crianças brincam são leves, fugazes e cintilantes, dançando ao sabor do vento. Mas as bolhas teológicas que negam a dor e as emoções aprisionam a nossa alma. A palavra para alma, no grego, é psyche, que pode significar borboleta, dando o sentido de beleza, leveza e fluidez. Nada pior na vida do que viver com uma alma pesada, sobrecarregada, culpada e angustiada. A alma, como uma borboleta, foi feita para voar livre, sem as correntes da culpa ou do medo. Apenas quando reconhecemos nossas dores e permitimos que elas nos transformem, é que a alma recupera sua leveza.
É quando perguntamos, com coragem e honestidade, à nossa própria alma: “Por que estás abatida, ó minha alma, e por que te perturbas dentro de mim?” (Sl 42.11), que furamos a bolha que a aprisiona, libertando-a das emoções e das dores que a aprisionam. O que não acontece, necessariamente, não de uma única vez, num passe de mágica. Em alguns casos, é preciso o exercício de uma fala livre, por vezes num ambiente psicoterapêutico, onde, através de uma boa escuta profissional, as dores e as emoções que pesam na alma e afligem o corpo possam ser enfrentadas, elaboradas e superadas.
É quando ousamos encarar o espelho da nossa alma e lhe perguntamos, com a coragem de quem busca a luz em meio às sombras: “Por que estás abatida, ó minha alma, e por que te perturbas dentro de mim?” (Sl 42.11), que furamos as bolhas que sufocam a nossa alma. Em alguns casos, será preciso buscar um espaço psicoterapêutico, onde, através de uma boa escuta profissional, sensível e acolhedora, as dores abafadas possam ser expressas livremente. Se esse for o seu caso, busque ajuda e fure essa bolha.