As transformações que aconteceram nas últimas décadas demonstram uma radical curva exponencial nunca vista na história humana. Com o progresso médico, científico e econômico, a população mundial multiplicou-se por dois no século XIX e triplicou no século XX, chegando a seis bilhões no ano 2000. A projeção da Organização das Nações Unidas (ONU) indica que a população mundial chegará a 8,5 bilhões de habitantes em 2030 e 9,7 bilhões em 2050.
A chamada Quarta Revolução Industrial, que para mim tem sido mais do que apenas industrial, trouxe inovações em todos os campos, rompendo com os paradigmas tradicionais, especialmente com o desenvolvimento tecnológico colocando em nossas mãos um “mundo” de recursos e aplicativos “democratizando” a comunicação humana no espaço conhecido como “rede social”, criando novos acessos e alcance nunca antes visto em que qualquer pessoa pode falar o que quiser, quando quiser e as informações já não precisam do sofisticado sistema dos meios convencionais de comunicação.
Aliado a isso, a pandemia do COVID-19 fez com que, do dia para a noite, o mundo inteiro entrasse em “reset” e repensasse tudo sobre todas as coisas. O isolamento demorado germinou um sem-fim de situações, emoções e fragilidades que as últimas gerações ainda não tinham experimentado.
O espaço não permite entrar em detalhes, mas todas essas transformações não foram apenas externas e nem trouxeram apenas facilidades, para mencionar as transformações tecnológicas. Agregado a tudo isso vieram as transformações sobre a visão da vida e do mundo, que chamamos de cosmovisão, mas também transformações comportamentais, da cultura e dos costumes.
Isso tudo sem contar com a transição da chamada Pós-modernidade no final do século passado, que tenho preferido chamar de Hipermodernidade, em que o indivíduo se tornou legislador e juiz de si mesmo para decidir independentemente o que desejar, quando desejar e (des)decidir também se assim achar melhor, e a vida vai deixando de ser estável, pois as verdades deixaram de ser universais e passaram a ser individuais, mas também plurais.
Mais recentemente, o mundo foi sendo transformado em “bolhas” abrigando a radicalidade de militâncias, sejam políticas, culturais ou qualquer outra forma e conteúdo que possam germinar direitos que serão defendidos a todo custo.
A transformação alcança os valores éticos e morais que agora são socialmente construídos, portanto fluídos e instáveis, que deixam de lado até mesmo a conformidade neurobiogenética do corpo para criar alternativas que possam legitimar os desejos pessoais de cada um a ponto de já não se conseguir contar a quantidade de orientação sexual e identidade de “gênero” que estão sendo descritas.
Pois bem, e o que tudo isso e muito mais tem a ver com a educação teológica?
O processo educacional no campo da formação teológica e ministerial tem como objetivo preparar líderes, ministros, vocacionados para atuarem em diversas áreas no serviço do Reino de Deus e das Igrejas. Isso envolve atuação diversificada que vai desde o pastoreio, atuação missionária, mas também social, educacional, no aconselhamento, na diaconia, na gestão institucional de Igrejas e organizações, na pregação etc. Muito bem, então é só ensinar os alunos na prática dessas atividades e tudo estará resolvido!
Não é fácil assim, a educação envolve mais do que a formação prática e instrumental. Todas essas e outras atividades ministeriais envolvem a mobilização e o atendimento de pessoas e as pessoas já não são as mesmas pessoas de ontem, pois, com a transformação radical da cultura, do mundo e tudo o que isso trouxe, as pessoas olham para a vida, para os relacionamentos e mesmo para a vida religiosa, para Deus, para a piedade e para a atuação eclesiástica de modo radicalmente diferente. E depois da pandemia a situação se complica mais ainda. Vamos a dois exemplos.
Entre o final de 2020 e início de 2021, quando se pensava que a pandemia iria dar trégua, fiz uma pesquisa em nível nacional, com mais de três mil participantes. Em um dos itens que perguntava se o participante (membro da Igreja) assistiu sermões, mensagens e/ou exposições bíblicas de outros expositores além de seu pastor, 85% dos respondentes (no total de 2.127) afirmaram que sim (1.846). Desses 28,1% afirmaram que encontraram melhores expositores que seu pastor; 9,6% não encontraram melhores expositores que seu pastor; e, 62,4% encontraram expositores semelhantes ao seu pastor
Outro dado importante obtido, agora envolvendo também pastores, num total de 3.067 respostas, diante da pergunta se aquele período te fez refletir sobre como você tem conduzido sua vida, 93,8% responderam afirmativamente, enquanto 6,2% disseram que não.
A primeira informação afeta diretamente a prática ministerial diante da satisfação que o membro da Igreja considerava diante do atendimento de seu pastor em um período gravíssimo de incertezas e total insegurança. Vamos lembrar que o pastoreio tem como uma de suas finalidades fomentar segurança, acolhimento, apoio e certezas. A pergunta que me vem como educador é sobre como foi a formação teológica e ministerial dos pastores daquelas “ovelhas” que responderam?
A segunda informação também é fundamental, pois aponta para o fato de que, diante daquele cenário pandêmico de incertezas, até mesmo sobre a sua própria continuidade de vida, as pessoas começaram a revisar seu projeto de vida e precisavam redescobrir a vida que deveria ir além de trabalhar, pagar boletos, ir aos cultos nos finais de semana.
Lembro que na época escrevi mais de 20 artigos aqui nessa coluna para mapear, ajudar e dar sugestões sobre o cenário envolvido pela pandemia e uma reflexão é saber como estamos hoje em relação ao que pudemos ver, sentir e ouvir após vencido esse período e a volta ou não volta integral dos membros das Igrejas que pastoreamos? Como isso afetou o modo de pastorear, as prioridades, as necessidades de aprender a dar outros cuidados na plantação de Igrejas, na atuação educacional nas Igrejas, na gestão, no cuidado integral das “ovelhas”? E como tudo isso alcançou e transformou os objetivos educacionais dos seminários e faculdades teológicas? Como isso afetou a atuação docente, o atendimento dos alunos, muitos provavelmente traumatizados pela perda de parentes?
Mais do que isso, como estamos preparando os alunos na formação teológica em relação às tendências culturais que estão afetando os valores éticos e bíblicos; como estamos preparando esses mesmos alunos a ministrarem a um povo que passa a ser proprietário e dono da verdade, mesmo sendo convertido, em que a sua própria experiência religiosa é que legitima o seu relacionamento com Deus e a Bíblia tem passa a ser apenas um livro histórico? Como estamos preparando os alunos nos seminários e faculdades teológicas para lidarem preventivamente com situações em que as pessoas, com o conceito de gênero líquido, já estão trocando de “gênero” como se troca de roupa? Como lidar com essa situação já presente dentro de nosso ambiente eclesiástico? Quais ferramentas estamos fornecendo aos nossos alunos para que possam compreender que, por um lado as pessoas são livres, e por outro lado existem ideais e valores bíblicos que norteiam o verdadeiro sucesso da vida?
Já estou para completar cinco décadas de atuação nessa área e me pergunto se ainda estamos gerindo nossas escolas como se todo esse cenário não tivesse existido e estamos em um mundo que é um retrato dos anos 1970, 1980? Esse tema é algo muito sério, pois a qualidade e profundidade de formação de nossos alunos afetará diretamente o seu modo de atuar na prática ministerial, que afetará a vida de milhares de pessoas diante de sua vida espiritual e em seu relacionamento na vida pública como sal, luz e embaixadores do Reino.
Desde o início de minha carreira no ensino teológico, tendo passado por todos os níveis de atuação na área, sempre ouvi a afirmação de que precisamos formar pastores e não teólogos, ao que sempre respondi com outra pergunta: é possível formar médicos sem Medicina?
Para responder isso na prática, em 1990 apresentei em uma conferência da AETAL o que hoje é chamado de Pedagogia Integral, uma forma de construir a educação considerando a pessoa em sua integralidade, não apenas em seu aspecto acadêmico (SABER/REFLETIR), mas também em sua formação prática e ministerial (FAZER), e como, no ministério, lidamos com gente, precisamos formar o aluno nessa área também (CONVIVER), mas também o ministério exige equilíbrio emocional e espiritual (SENTIR) e apresentar sua vida como modelo, afinal o ministério também tem um caráter discipular (SER). E isso incluiria a necessidade de fornecer aos alunos importantes ferramentas para compreender esse mundo, as tendências que estão também formando novas culturas e exigências que muitas vezes colocam em risco nosso saudável viver cristão.
Essa abordagem traz respostas a esse caminho que tanto precisamos em redescobrir em como fazer educação teológica e ministerial.